"Picante - Histórias que ardem na boca" é um livro de contos de Alice Vieira, Catarina Fonseca, Leonor Xavier, Maria João Lopo de Carvalho, Maria do Rosário Pedreira e Rita Ferro, que se lê de um só fôlego.
Já o referi quando foi lançado, portanto desta vez vou limitar-me aqui a colocar algumas passagens das escritoras. Quem, melhor do que elas, para dar um "cheirinho" deste "Picante"?
"Ensinavam-lhes ainda que a noite de núpcias era sempre uma experiência traumática porque «os homens são violentos por natureza», e que a única maneira de lhe sobreviver e ser feliz era fechar os olhos com muita força e pensar em Nossa Senhora e na pátria."
Alice Vieira
"Araminta fora corrida - enfim, transferida, que os ricos não são corridos de lado nenhum - do sanatório infantil a alguns quilómetros, no outro lado da montanha, por contar histórias de terror às crianças e ajudar a matá-las mais depressa. [...] Semeávamos o pânico como quem semeia feijão, contou Araminta a Godofredo Honório, apesar de nunca nenhum deles ter alguma vez semeado feijão. Era uma espécie, disse Araminta, de garantia de imortalidade. Aqueles vão-se lembrar de nós para sempre."
Catarina Fonseca
"Entre a bainha da calça preta e a sandália de salto alto, reparei-lhe no traçado do tornozelo. Perfeito. Confesso-me pedólatra, vítima de cegueira súbita e vício de adorador. Sempre que contemplo pé e tornozelo em mulher morena, perco-me e mergulho de cabeça nesta adição."
Leonor Xavier
"A conversa fluía vagueando entre interesses sem interesse, diriam elas: o jogo da véspera, o último modelo da Mercedes, as ações a caírem na bolsa, o ginásio. Almoço rápido a meio de uma quarta-feira de trabalho. sempre o mesmo restaurante, sempre o mesmo prato - cozido à portuguesa. E falavam daquilo que os homens falam, entremeando as carnes com as couves, as batatas com os enchidos, o vinho com as palavras. As mesmas, provavelmente. Falta de imaginação, diriam elas."
Maria João Lopo de Carvalho
"Mas, afinal, de que lhe serviam tantas qualidades se, nos últimos anos, não arranjara um único companheiro com quem pudesse manter uma conversa por mais de um quarto de hora sem ele se referir lascivamente aos seus lábios cheios, às coxas bem desenhadas, aos seios que, até por isso, trazia todos os dias mais escondidos? Estava farta. Farta de burgessos e de passar as noites sozinha."
Maria do Rosário Pedreira
"Tão chic como a casa da Reis Torgal havia só uma, a da Antónia Moreno, com duas entradas distintas: uma, pela rua do Norte; outra, pelo número 53 da Rua das Gáveas, onde o preço variava consoante o acesso. Pelo Norte entravam os marinheiros, cocheiros, carvoeiros e trolhas; pelas Gáveas, fidalgos, magistrados, conselheiros e comerciantes abastados, dizendo-se até que havia edifícios diferentes para uns e outros, o que era falso: tanto pobres como ricos se satisfaziam nas mesmas camas e com as mesmas messalinas, embora a preços distintos e a horários desencontrados."
Rita Ferro
Seis escritoras com estilos de escrita muito diferentes e seis histórias mais ou menos apimentadas, que certamente agradarão à maioria dos leitores. Gostei, evidentemente!
Note-se ainda, como curiosidade, que as quatro primeiras escrevem segundo as regras do novo acordo ortográfica e as duas últimas seguem as da antiga ortografia.
(e desta não se aceitam reclamações de que vos enganei com o título, que já tinha anunciado que falaria do livro depois de o ler, OK? :))