"Há uns segundos breves, na vida de todos os dias que não padeçam de nevoeiro ou chuva, em que o Sol, no seu poente, como que acenando um derradeiro adeus em beleza, matiza céu e terra de cor-de-rosa.
É um instante fugaz, indeterminado, alheio ao mecanismo monótono dos ponteiros do relógio; mas, para aquele homem, que talvez fosse poeta, conquanto não soubesse fazer versos, esse momento cor-de-rosa na vida do mundo ocupava todas as horas do dia, antes na expectativa, depois na recordação."
António Victorino d'Almeida, no conto "Um Caso de Bibliofagia", in "Os Devoradores de Livros"
Andava triste. Desalentada, sem saber porquê. Ou melhor, até sabia. Era aquela rotina, aqueles gestos diários e repetitivos, aquela mecanização do quotidiano em que se movia como um autómato. Um dia, outro e outro, todos em fila indiana, já eram tantos que lhes perdera a conta. Cumpria as suas tarefas sem ímpeto e sem garra, no final chegava à janela, indiferente, apenas para constatar que lá fora também as tonalidades pardacentas tomavam conta da rua, de quando em vez caía uma morrinha acinzentada. Sentava-se no sofá e abria um livro, para desistir da leitura poucas páginas volvidas. Ligava a televisão, mas no ecrã só desfilavam desgraças alheias até à exaustão, tanto reais como ficcionais. Fechava o aparelho e os olhos, apetecia-lhe dormir e só acordar noutra era planetária. Não adormecia.
Naquele fim de tarde folheava um álbum de fotografias à toa, quase sem reparar nas imagens. E foi nesse exacto instante que decidiu sair do remanso do sofá e agir. Dirigiu-se ao armário e tirou de lá a caixa escondida no fundo da prateleira. Hesitou ainda uma fracção de segundo, antes de levar o primeiro aos lábios. Voltou para o sofá, onde se estendeu, indolente, cerrando novamente os olhos. E, com a embalagem ainda firme na mão, foi colocando um a um na boca, como se fosse um ritual...
Adormeceu, finalmente! Pairava-lhe um leve sorriso nos lábios entreabertos, de onde pendia um fio de baba castanha que pingava no tapete, exactamente em cima dos bombons "mon chérie" que tinham sobrado...